Tivemos o aniversário da mais nova em casa esse final de semana. Uma festa do jeitinho que eu gosto: simples, cheia de amor e pensada nas crianças. Lá pelas tantas, enquanto eu estava totalmente imersa nos preparativos, a filha do meio emerge do banheiro, pingando água e enrolada na toalha de mão (que até então, estava limpinha, colocada no banheiro minutos antes para os convidados). Eu respirei fundo. Vendo que a hora da festa de aproximava, Maisie adentrou o banheiro sozinha e tomou banho. De lá, ela marchou escada acima e só voltou já vestida. Uma calça rosa e blusa amarela, ambas confortáveis e que ela usa no dia a dia. Respirei fundo novamente.
Horas depois, festa executada com sucesso e Maisie tendo aproveitado até o último segundo, cantando, dançando e tocando instrumentos, eu recebi a seguinte pergunta de uma leitora querida no Instagram:
Eu respondi que não houve frustração da minha parte. E não houve mesmo. Eu não gastei dois minutos do meu tempo tentando convencê-la a vestir outra coisa. Na verdade, na correria dos últimos minutos, quando eu estava tendo que me vestir e vestir a aniversariante, eu senti gratidão pelo fato da minha pequena ser tão cheia de atitude e autonomia. Além disso, a festa era na nossa casa, mais especificamente no tapete da nossa sala, e não havia motivo para que ela se vestisse de outra maneira, afinal, ela estava limpinha e “apresentável”. Não seria isso o suficiente? Por que exigir mais de uma criança de apenas 4 anos? Dias depois, eu me peguei refletindo sobre isso.
No Dia de Ação de Graças, Maisie escolheu vestir um pijama. Era um pijama arrumadinho, que nem tinha cara de pijama, mas era um pijama mesmo assim. Mais uma vez, na correria na qual eu me encontrava para dar conta da casa, das crianças e do jantar, eu nem disse nada. Horas depois, antes mesmo de começarmos o jantar, Maisie adormeceu no meu colo e dormiu o jantar inteiro, mesmo com o barulho das conversas e das outras crianças brincando. Eu fiquei pensando que talvez ela não estivesse se sentindo bem. Sabe quando o nosso corpo começa a dar sinais de que precisa de conforto e descanso? Pois é. Não por acaso, Maisie vestiu seu pijaminha. Felizmente, ela ainda não absorveu que deve ignorar os sinais do próprio corpo em nome da aparência. Se eu tivesse forçado minha filha a trocar seu pijama por um vestido rodado, essa talvez tivesse sido sua primeira lição nesse assunto.
Anos atrás, eu testemunhei a dor de uma amiga querida enquanto ela sofria um aborto espontâneo no ambiente de trabalho. “Abortando de salto alto.” Foi essa a frase que ela usou, com um sarcasmo que é unicamente seu, mas que, nem de longe, mascarava a sua dor. Ela não deveria ter sentido que precisava estar no trabalho naquele momento. Ela não deveria ter sentido que ainda precisava se submeter a um salto alto, mesmo diante de tamanha dor. Mas não foi isso que ela passou a vida toda aprendendo? Não foi isso que eu e você também aprendemos? A passar por cima dos incômodos em nome da “boa” aparência? Não saímos (quase) todas com as orelhas furadas ainda da maternidade?
Eu fico pensando que a realidade de ter sempre alguém tecendo comentários e/ou fazendo críticas sobre sua aparência, é uma com a qual meninas precisam se acostumar desde sempre. E é triste constatar como a voz por trás desses comentários e críticas muitas vezes é a da mãe. Num sistema que objetifica mulheres desde cedo, que atrela valor próprio a beleza, que rouba das mulheres o direito de envelhecer com dignidade, nós, enquanto mães, precisamos estar atentas. Num mundo onde Margot Robbie, Paolla Oliveira e Yasmin Brunet (todas mulheres brancas, loiras e “padrão”) são criticadas sem receio por, na visão de homens medíocres, terem caído alguns degraus no altar da perfeição, quais mensagens temos escolhido passar para nossas filhas?
Ainda na festinha de aniversário da Nora, eu estava conversando com a esposa de um amigo do meu marido, quando ela comentou sobre o cabelo da Maisie estar mais curtinho do que a última vez que ela a viu. Eu contei que Maisie cortou o próprio cabelo sozinha e que como, assim que vi, a primeira coisa que eu disse foi: “Uau, você está linda.” Claro que eu também expliquei que, da próxima vez que ela quisesse cortar o cabelo, ela deveria me avisar para que eu a levasse ao cabeleireiro. Expliquei que cortar o próprio cabelo é difícil, e que um dia ela até pode aprender e decidir que quer cortar o dela sozinha, mas que por hora, precisamos que outra pessoa faça isso por ela. Dias depois, fomos juntas a minha cabeleireira e fizemos desse evento algo divertido para nós duas. Não, o cabelo dela não ficou todo igual, mesmo depois da visita ao salão, mas a autoestima da minha filha saiu ilesa. Quando eu vi aquele cabelo cortado na altura do pescoço, tudo que eu menos queria era que minha reação transmitisse a minha filha a mensagem equivocada de que ela era menos amada ou menos aceita ou menos bonita por conta do seu cabelo. Leva menos tempo para um cabelo crescer do que para reparar uma autoestima flagelada. Enfim, a esposa do amigo, também mãe de uma menina, se mostrou impressionada com a forma como eu lidei e comentou que ela não sabia se ela teria pensado em lidar dessa mesma forma. E eu fiquei pensando como toda vez que uma menina é permitida ser quem ela é nesse mundo, nós, enquanto mulheres, nos curamos um pouco de forma coletiva.
Assistindo uma entrevista da Greta Gerwig, diretora do filme Barbie, achei interessante quando ela disse que durante o processo de criação do filme, ela várias vezes precisou “desligar” a mulher adulta que ela é e se conectar com a menina que ela foi um dia. Ela precisou silenciar a voz que sempre tinha medo de que algo que ela estava colocando no filme, fosse no cenário ou no figurino, fosse ser considerado cafona, rosa demais ou brilhoso demais. Ela comentava sobre um fenômeno que ela observou em meninas: quando meninas de 5, 6, 7, 8 anos estão brincando de se fantasiar, elas geralmente vestem várias roupas e acessórios de uma só vez. Elas vestem o tutu e as meias coloridas e as asas de borboleta e as luvas de seda e os óculos escuros e cachecol e o chapéu e a bolsa de lantejoula. A medida que essas meninas vão crescendo, elas vão aprendendo que isso é “demais” e que elas têm sempre que ter cuidado pra não ser “demais.” Imediatamente eu pensei na Maisie, porque é exatamente assim que ela se veste muitas vezes. E claro, podemos dizer que meninas apenas amadurecem e com isso, mudam sua forma de se vestir, mas você e eu sabemos bem o quanto isso é simbólico. Nós não deixamos para trás só as camadas de roupas a medida que crescemos, nós deixamos para trás também as camadas da nossa personalidade, de quem nós somos e do que gostamos, porque absorvemos que somos “demais.” Falamos demais, sentimos demais, sonhamos demais, queremos demais. Com frequência, vão nos ensinando a ser menos e, aos poucos, vamos absorvendo.
Eu não quero que minhas filhas sejam menos. Por mais que seja frustrante lidar com as escolhas delas, por mais que eu precise desconstruir a ideia de que a aparência delas possa ser julgada como um reflexo do meu desleixo enquanto mãe, eu não quero que seja a minha a primeira voz a ensinar às minhas filhas que é normal que os outros questionem o que elas decidem vestir ou como gostariam de cortar o cabelo. Que não seja eu, mulher, que já sofreu com tanto salto desconfortável nessa vida, a falar para as minhas filhas que o conforto delas deve ser desconsiderado. Que não seja eu, mulher, tantas vezes já diminuída pelos comentários alheios sobre minha aparência, a tentar também diminuir as minhas filhas.
Eu quero mais é que minhas filhas se alastrem, se espalhem, se preencham de si mesmas e se esparramem pelo mundo. Eu quero o mesmo para todas as filhas de todas as mães, que elas ocupem todos os espaços e que com isso, nós também sejamos capazes de recuperar os nossos pedaços.
Li o texto na madrugada logo que vc postou, enquanto amamentava meu RN, fiz questão de voltar aqui e comentar, amo seus textos, mas esse me tocou profundamente. Sou Mulher, Mãe de 3 crianças, duas delas meninas, e lendo vc hj, me vi enquanto mulher, me vi com minhas filhas, por vezes "podando" para que se adequem, especialmente a mais velha que ainda é tão pequena.
Obrigada Fey pelas reflexões 🌹❤️
Muito obrigada, Fey. Que lindo texto.